Povo
Mais um passo para quebrar a invisibilidade
Desde julho de 2016, famílias das três comunidades quilombolas de Pelotas contam com o talão de Notas Fiscais de Produtor
Jô Folha -
Mais de 80 famílias das três comunidades quilombolas de Pelotas já contam com talão de Notas Fiscais de Produtor. O documento que parece algo simples - e é - traz um efeito transformador aos moradores. Além da garantia de que conseguirão comprovar a atividade como agricultores, os quilombolas ganham mais uma certeza: podem contar com benefícios, como auxílio-doença, licença-maternidade e aposentadoria. Direitos, inclusive, que têm visto se tornar realidade nos últimos meses.
É mais um dos resultados que vêm na carona dos processos abertos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para regularização fundiária das terras. É mais um passo que os tira da invisibilidade em que se mantiveram soterrados por décadas.
"Os talões estimulam as famílias a produzir. Sem nota, eles não podiam vender", destaca o líder do Quilombo do Algodão, Nilo Dias. Agora, com autonomia, não dependem das cartas de comodato negociadas com agricultores da vizinhança. E o melhor: a renda também tende a crescer - projeta Nilo. Nas tratativas para terem acesso às notas, não raro, tinham de destinar de 10% a 30% do lucro com quem conseguiam os talões emprestados.
E mais: com o talão de Notas Fiscais de Produtor, as famílias quilombolas estão aptas a fechar negócios com o governo através de programas, como o Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
Benefícios assegurados e tranquilidade também
A aposentada Maria Idalina da Silva, 60, não esconde a alegria. Convida o Diário Popular para entrar na residência e apresenta as aquisições desde que passou a contar com o valor de um salário mínimo, no mês de abril. Fogão, um balcão para pia, um armário para cozinha, televisão... "Aos poucos, estamos conseguindo comprar coisas novas", comemora. Antes, os gastos com remédios acabavam por engolir boa parte da renda familiar.
"Tenho muitos problemas de saúde". Diabetes, hipertensão, alterações cardíacas, dores na coluna. Um quadro que passa a ser, ao menos, amenizado com a notícia da aposentadoria, conquistada com a união de duas medidas: a emissão do talão como agricultora - que serve de prova à atividade - e a correria para confirmar através de testemunhas, junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que se manteve como trabalhadora rural, ininterruptamente, nos últimos 15 anos.
"São resultados de um processo de muita luta, desde o surgimento do programa Brasil Quilombola, em 2004", reforça a assessora social do Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (Capa), Daniele Schmidt Peter, que acompanha de perto os avanços.
Direitos assegurados
A pequena Ana Júlia, de sete meses, agarra-se ao peito da mãe Daiane da Silva Farias, 23, e mama. A cena é simbólica e preenche de significado as poucas palavras pronunciadas pela jovem. Com a licença-maternidade assegurada, Daiane pôde dedicar-se aos primeiros meses de vida da primogênita com a cabeça mais leve, certa de que poderia contribuir com o orçamento familiar.
O mesmo ocorreu com a irmã Geneci da Silva Farias, 32, prestes a comemorar o aniversário de um ano da caçula Tainá. O desafio é tentar resgatar os valores referentes à licença-maternidade de Jéssica, de três anos de idade, já que as mulheres do campo têm prazo de cinco anos para ir em busca do benefício - alerta a assessora social do Capa. Bastará comprovar que já realizava atividades como agricultora, pelo menos, dez meses antes da gravidez. "Se é um direito meu, né, claro que eu vou ir atrás", afirma.
As comunidades quilombolas no "Território Zona Sul"
- Aceguá: Tamanduá, Vila da Lata
- Arroio do Padre: Vila Progresso e Linha Fão
- Candiota: Candiota
- Canguçu
Armada, Bisa Vicente, Boqueirão, Cerro da Boneca, Cerro da Vigília, Cerro das Velhas, Estância da Figueira, Fávila, Faxinal, Filhos dos Quilombos, Iguatemi, Maçambique, Redenção do Manoel do Rêgo, Passo do Lourenço, Potreiro Grande
- Cerrito: Lichiguana
- Cristal: Serrinha do Cristal
- Encruzilhada do Sul: Medeiros, Quadra
- Jaguarão: Madeira
- Morro Redondo: Vó Ernestina
- Pedras Altas: Bolsa do Candiota, Solidão e Várzea dos Baianos
- Pelotas: Algodão, Alto do Caixão, Vó Elvira
- Piratini: Faxina, Fazenda Cachoeira, Rincão do Couro, Rincão do Quilombo e São Manoel
- Rio Grande: Macanudos
- Santana da Boa Vista: Tio Dô
- São José do Norte: Vila Nova
- São Lourenço do Sul: Coxilha Negra, Monjolo, Picada, Rincão das Almas e Torrão
- Turuçu: Mutuca
Relembre
No final dos anos 2000, a Fundação Cultural Palmares passou a emitir as Certidões de Autorreconhecimento às comunidades quilombolas da região. Foi o primeiro passo para que começassem a sair da invisibilidade. A grande maioria não tinha documentos; sequer Certidão de Nascimento. E o reflexo desse processo de exclusão, até hoje, pode ser facilmente percebido - conta o líder do Quilombo do Algodão, Nilo Dias. Basta procurar moradores alfabetizados, acima dos 40, 50 anos de idade. São raros os que sabem ler e escrever. "As escolas não aceitavam negros."
Em busca da titulação das terras
Estão sob o comando do Incra os processos que buscam a regularização do território quilombola em todo o país. Uma das primeiras medidas - até que a União conceda o título de propriedade das terras às comunidades - são os estudos antropológicos, que permitam definir a delimitação das áreas. Até o momento, entretanto, apenas duas comunidades da Zona Sul já passaram pela análise: a Maçambique, em Canguçu, e a Monjolo, em São Lourenço do Sul.
E, ao que tudo indica, ainda não há previsão de nenhum outro estudo ser realizado devido à escassez de recursos. "O governo não terminou com a política de regularização, mas não destina verba, então dá no mesmo. Para todo o Rio Grande do Sul, em 2017, repassaram R$ 30 mil, mas um único estudo custa em torno de R$ 90 mil", lamenta Nilo Dias.
Os efeitos do talão de Notas Fiscais de Produtor nas comunidades quilombolas
* De Pelotas
1) Algodão - Das 106 famílias, cerca de 40 já contam com o talão. Na prática, as produções de feijão e de milho têm aumentado, em média de 20%. Aposentadoria e licença-maternidade também integram os efeitos positivos de ter a atividade rural oficialmente reconhecida, na Colônia Triunfo, já que deixaram de ser encarados como posseiros.
2) Alto do Caixão - Pelo menos 40 famílias de um total de 120 também já conquistaram o talão do produtor, que garante autonomia aos agricultores. Mais do que festejar a elevação de aproximadamente 40% na produção de milho, feijão e batata-doce, os quilombolas comemoram a possibilidade de negociar um preço justo. "Antes, as nossas famílias tinham que entregar a produção para outros agricultores venderem e perdiam no preço", destaca um dos líderes da comunidade, Charles Dias da Silva.
3) Vó Elvira - A maioria das cerca de 40 famílias não tem ligação direta com a agricultura - explica o líder Éder Ribeiro Fonseca. "A nossa comunidade, por ser no distrito de Monte Bonito, tem uma característica mais urbana. Temos estudantes, autônomos, pessoas trabalhando na cidade e também nas indústrias de conserva." Ainda assim, a expectativa é de que, pelo menos, três famílias contem com talão de Notas Fiscais de Produtor.
* Da região
Os moradores das comunidades quilombolas da Zona Sul têm trocado experiências, com o objetivo de que, aos poucos, possam contar com o reconhecimento como agricultores. O exemplo de Pelotas, que passou a emitir os talões em julho de 2016, foi levado a Encruzilhada do Sul nesta semana.
- Saiba mais
As comunidades quilombolas são grupos étnicos - predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana - que se autodefinem a partir das relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e as práticas culturais próprias.
Estima-se que em todo o Brasil existam mais de três mil comunidades quilombolas. Famílias que possuem, nas suas raízes, a resistência à opressão historicamente sofrida.
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